Por Daniel Ribeiro.

As obras literárias de J.R.R. Tolkien são frequentemente citadas como inspiração para temas líricos e álbuns inteiros no mundo do metal. Ora, Tolkien escreveu aquela que é, provavelmente, a mais conhecida obra de fantasia da história, com 3 livros que conquistaram centenas de alusões e referências em toda a literatura, música e cinema. A trilogia d’O Senhor dos Anéis certamente deixou sua marca permanente na nossa cultura. Com bandas que vão desde o Black Metal de Burzum até o power metal irretocável do Blind Guardian, os trabalhos de Tolkien podem ser encontrados em praticamente todas as variações do estilo.

Além de O Senhor dos Anéis e O Hobbit, Tolkien escreveu outro livro que preparou todo o cenário da Terra Média. O Silmarillion é uma “coleção” de obras do autor, publicadas e editadas postumamente, e contam a história do mundo no qual se estabeleceriam os livros posteriores já citados aqui. Bom, apesar de tudo isso parecer redundante pra maioria dos leitores, eu queria chegar no conceito de “Terra Média” ou “Middle-Earth”. De fato, é um cenário único e misterioso, principalmente se considerarmos quando ele foi escrito, e é nessa terra fantástica que se passa a melhor e mais conhecida obra da banda alemã Blind Guardian. O “Nightfall in Middle-Earth” pinta toda aquela imagem dentro da cabeça dos ouvintes de uma terra devastada pelas guerras, cheia de tiranos, reis, exércitos, monstros, criaturas místicas e outros tipos de figuras, que carregam uma pesada influência do mundo fantástico de Tolkien.

A história por trás desse álbum chega a ser difícil de compreender numa primeira vez que você ouve o disco, pois no encarte do CD (e nós tivemos a sorte de ser dessa época) existiam vários textos e background para toda a história que seria retratada. Contem também algumas pequenas estórias que ajudam a entender o tema tratado pela banda e dá ao ouvinte que não conhece os livros um retrato da atmosfera e o cenário fictício que compõem o conceito.

“À medida que a escuridão chegava ela também trazia o silêncio. Porém, o silêncio também traz consigo a loucura. O silêncio me rodeia, um silêncio mortal. Presos no calabouço dos meus pensamentos mais sombrios, todos os portões que me levariam de volta ao mundo da luz estão fechados pra mim.”

A história é assustadora e muito vasta, sendo bem difícil de capturar na primeira vez que você escuta o álbum, mas, assim como um bom livro, cada vez que você o explora você se atenta a detalhes mais sutis nas histórias que estão fluindo ali dentro. A derrota dolorosa, as guerras furiosas, as missões épicas, os juramentos secretos, o assassinato, o caos, a desolação, o amor, o medo e as terras distantes, são o que ditam o ritmo do álbum.

“O pânico se instala quando lembro das muralhas de fogo, trazidas por tropas sanguinárias. Logo a terra foi devastada e a sua beleza toda desapareceu. A morte chegou para ficar nesses dias, e as almas dos mortais embarcaram em uma viagem com destino desconhecido.”

O álbum está “configurado” de forma que seu enredo seja entregue através da música e dos intervalos entre elas. Normalmente, há uma pequena narração para preparar o palco, geralmente feita por personagens desconhecidos, preparando a entrada da próxima música a ser tocada pela banda. A faixa de abertura, “War of Wrath”, por exemplo, consiste em um rei aparentemente malvado conversando com seu homem de confiança sobre lugares onde poderão se esconder, dando uma ideia de temor do que está por vir. Isso nos leva diretamente à pegadíssima “Into the Storm”, que soa quase como um hino de uma batalha que leva milhares de homens a encarar o seu infeliz destino contra a morte.  Na verdade, quase todo o álbum tem esse ritmo que se desenrola como um filme “cego”, onde o ouvinte imagina a história, seguindo o ritmo ditado pelas músicas e sempre imaginando o que virá a seguir. Um belíssimo conceito, e uma execução mais bela ainda. O Nightfall in Middle-Earth é um cruzamento entre o filme, uma peça de teatro e um álbum de power metal.

Se tornando cada vez mais sombria à medida que você imerge no álbum, a história vai trazendo um presságio mais dramático, atingindo seu ápice com as fantásticas “Capture” e “Blood Tears”, que contam a história de um prisioneiro capturado e torturado, aparentemente fazendo uma serenata bem emocionada para alguém, falando sobre sua dor e sofrimento, o que nos traz composições muito profundas e emocionais, considerando as circunstâncias em que foram desenvolvidas por ele.

“Longe do nosso alcance, ele foi acorrentado a uma rocha no cume das mais altas montanhas. Desesperado e exausto, aguardava sua salvação, que por muito tempo não chegaria. A lua surgiu, e junto dela eles surgiram, vindos do deserto gelado. O que encontraram, foi uma dor indescritível.”

Além do enredo cativante e fantástico, o Blind Guardian nos apresenta seu melhor momento, musicalmente falando, até aquele momento. Parece que aquela obra foi feita para se tornar um álbum de metal, com as guitarras quase sempre furiosas e melódicas ao mesmo tempo, com solos abundantes e músicas inteiras parecendo uma grande sinfonia de guitarras. Outros instrumentos também aparecem de forma brilhante e precisa, como flautas, violões, violoncelos, teclados e violinos, principalmente nas baladas e nos intervalos e sessões mais lentas da obra.

Sobre o vocal, se torna até redundante comentar algo sobre isso quando falamos de Blind Guardian. Se a música é incrivelmente rápida e melódica, como “Time Stands Still (At the Iron Hill)” ou se o clima é lento e sombrio (“The Eldar”, por exemplo), temos a certeza de que o vocal foi executado de forma simplesmente perfeita. Sinceramente, é uma das melhores performances vocais que já vi em um álbum de metal.

“O respeito e o medo nos dominavam, mas o juramento era mais forte que isso. Uma das pedras que perdemos há muito tempo já não estava tão longe de onde estávamos agora. Mais uma vez nos deu uma enorme vontade de tê-la de volta. Não preciso dizer que junto dessa vontade, veio também a desgraça. Novamente.”

“When sorrow sang. All was lost”

A história começa a ficar cada vez mais obscura na segunda metade do álbum, e podemos dizer que o clima que se cria é cada vez mais impecável e sombrio. As passagens mais alegres de “Into the Storm” não estão mais presentes, em vez disso, temos faixas mais “baladas”, exceto a estranhamente animada “A Dark Passage”, criando um clima bem diferente do que cantam suas letras. A derrota  e sua amargura tomam conta das letras, e descobrimos que esta história não terá um final feliz.

À medida que o álbum vai chegando ao fim, sua história irá se concluir de forma melancólica, porém esperançosa, e a Terra Média irá chegar à sua segunda “era”, com O Hobbit e O Senhor dos Anéis. O que faz desse álbum o melhor registro de power metal da década de 90 é a forma com que o Blind Guardian pega esse conceito diverso e bastante expandido e refina em um álbum que mais parece um filme épico de fantasia. Para tal, eles usam todos os instrumentos possíveis no seu arsenal musical para que a experiência seja a mais completa possível, colocando uma energia e emoção no álbum que é incomparável no gênero.

Pegue esse álbum, cada peça dele, e combine com a história original; depois de ouvir esse disco em sua totalidade você perceberá que ele respira inovação, mas ao mesmo tempo se mantem fiel à obra literária, criando um paralelo entre o disco e os livros.

Se você ainda não embarcou nessa jornada nas profundezas da Terra Média, você deve isso a sí mesmo. Preste o juramento, se agarre à sua jornada e derrame seu sangue nessa terra esquecida!

“O medo tomou nossos corações e trouxe um frio congelante. Era noite, e nenhuma estrela atravessava aquele manto de horror. As sombras estavam ao nosso redor. Aquele sofrimento infinito foi seguido de lamentos miseráveis ouvidos ecoando por todos os lugares. As árvores, antes majestosas, agora estavam fracas, mortas, extintas para sempre…”