Texto pelo colaborador Guilherme Moreira Silva Martins Montanha.

 

 

 

Segundo Isaac Newton, e sua Lei da gravitação universal, tudo o que sobe, ou que lá está, um dia cairá. E mesmo que seja fácil buscarmos situações falhas em que a regra não se aplica, são igualmente fáceis os exemplos verdadeiros. E um dos mais simbólicos é decerto a trajetória do que foi o movimento grunge.

 

Em menos de um ano após o lançamento do seu segundo álbum de estúdio, o Nirvana já era um household name da cena musical, tendo destronado “Dangerous”, de Michael Jackson, do top 200 da Billboard. Bandas como Pearl Jam, Alice in Chains, e Soundgarden também foram “embarcadas” na onda alternativa, movida pelos anseios da grande mídia, público e gravadoras sedentas. Logo, as rádios norte-americanas estavam dominadas pelos vocais rasgados e riffs grudentos típicos do estilo.

 

A influência grunge ainda avançaria além das fronteiras do gênero, encabeçando uma onda de renovação dentro do metal, através de discos como “Sound of White Noise”, do Anthrax, e os tardios “Load” e “Reload”, do Metallica, e pondo um fim, ainda que porventura temporário, as calças apertadas e aos cabelos repletos de laquê.

 

No entanto, a lei de Newton é inevitável, e em uma curta janela de tempo acompanhamos o suicídio de Kurt Cobain, e o concomitante fim do Nirvana. Simultaneamente, o Pearl Jam lutava contra sua própria fama, interrompendo a gravação de videoclipes, boicotando a promoção de seus álbuns, e embarcando em uma cruzada épica contra o monopólio comercial da Ticketmaster. Os rapazes do Alice in Chains também amargavam dificuldades para promover seu disco homônimo, fato causado pelo vício incessante de Layne Staley, que fez seu último show com a banda no dia 3 de julho de 1996. Situações semelhantes viviam o Screaming Trees e o Stone Temple Pilots.

 

E tudo isso nos leva a quarta força do grunge. 

 

O Soundgarden, de Chris Cornell e companhia, vinha de seu mais bem-sucedido álbum de estúdio, “Superunknown”, detentor do maior sucesso da banda, “Black Hole Sun”, e das deliciosamente pesadas “Spoonman” (ganhadora do Grammy de melhor performance Metal) e "The Day I Tried to Live". Ademais, o grupo enfrentava cansativas, mas exitosas, turnês pela Europa e América do Norte, o que somente reforçava seu status como força motriz do, agora, sobrevivente movimento grunge.

 

Toda essa conjuntura apontava para um futuro brilhante do Soundgarden, mas os bastidores não andavam tão bem assim. A começar pelos problemas de voz sofridos por Chris Cornell em decorrência das longas sequência de shows, que inviabilizaram uma segunda perna da turnê europeia, substituída por um curto período de reclusão do grupo. Ao mesmo tempo, o baixista Ben Shepherd enfrentava um crescente alcoolismo, e as tensões criativas entre Kim Thayil e o restante da banda, que haviam aumentando abruptamente nas sessões de “Superuknown”, pareciam não esfriar. 

 

E foi nesse cenário cheirando a pólvora que, em 1995, o Soundgarden dava início as gravações de “Down on the Upside”.

 

I’m down on the upside

 

Uma das características mais interessantes da discografia do Soundgarden, na opinião daquele que vos escreve, é a clara direção musical presente em toda a trajetória da banda. Pouco a pouco, a velocidade e agressividade vão se diluindo, e dando lugar ao experimentalismo e psicodelismo tão marcantes nos trabalhos tardios do grupo. Feita a observação, é visível um salto sonoro de “Superuknown” para “Down on the Upside”, e de “Superuknown” para “Badmotorfinger”, sendo que, ao compararmos o disco de 1996 com “Ultramega Ok” ou “Louder Than Love”, temos uma disparidade gritante. 

 

Ainda assim, o DNA dos riffs e groove alla Led Zeppelin continuam presentes, embora mais similares aos da fase “Physical Graffiti” e “In Through the Out Door”. Inclusive, foi essa mudança sonora, marcada pela adesão a um estilo não tão agressivo, e dando prioridade para melodias cantáveis e composições diretas, uma das rusgas nas sessões de “Down on the Upside”. De um lado, Kim Thayil advogava por mais guitarras e feedback, e do outro Cornell insistia que a banda explorasse alternativas progressivas, psicodélicas e menos gritadas. O resultado foi a presença de uma única faixa de Thayil no disco, e participações majoritárias de Cornell e Shepherd, este último vivendo um momento criativo ímpar desde sua chegada ao conjunto de Seattle.

 

Apesar disso, as sessões de gravação foram breves, tendo durado cerca de quatro meses, entre novembro de 95 e fevereiro de 1996. O disco, que foi produzido pela banda em colaboração com Adam Kasper (que anos depois seria responsável pelo soturno e excelente “Riot Act”, do Pearl Jam), apresentava uma proposta sônica crua, buscando uma sensação próxima das apresentações “ao vivo” do grupo. Segundo o próprio Cornell, as gravações foram “mais rápidas e mais fáceis” do que as do álbum anterior, porém muito exaustivas.

 

Come on in and take me on an override

 

“Down on the Upside” abre com “Pretty Noose”, faixa carregada pelos vocais rasgados de Cornell, que canta no limite de sua tessitura vocal. A música foi também o primeiro single do disco, e possui uma levada quebrada e belíssimo conjunto de guitarras. “Rhinosaur” mantém a pegada, com a bateria distinta de Matt Cameron se sobressaindo junto aos power chords de Chris.

 

“Zero Chance” é a primeira balada do álbum, e uma das mais lindas na trajetória do grupo. Toda parte instrumental é primorosa, enquanto a letra de Cornell funciona como a cereja do bolo. “Dusty” retoma a influência do rock setentista nos versos, e mistura bem sonoridades acústicas sem desvirtuar as características da banda, remetendo uma forte lembrança de Jimmy Page nas cordas.

 

“Ty Cobb” chama atenção pelos instrumentos não convencionais (nesse caso o bandolim e a mandola), e remete bastante a certas composições experimentais do “Superunknown”. “Blow Up The Outside World” e “Burden In My Hand” são charmosas, e fortalecem o álbum em uma dobradinha espetacular e acessível.

 

“Never Named” puxa a veia punk da banda, dando um respiro emocional para o estrondo que é “Applebite”. Chris e co. constroem uma das melhores atmosferas musicais do rock, que deslancha em uma explosão de vocais distorcidos. “Never The Machine Forever” é a única composição assinada por Thayil, e traz consigo guitarras pesadas que nos fazem recordar a origem do Soundgarden, e sobretudo, os riffs dissonantes de “Badmotorfinger”.

 

“Tigher & Tighter” é uma das faixas que por pouco não entraram no tracklist, sendo ela remanescente das sessões do “Superuknown”. Foi graças a insistência de Stone Gossard, guitarrista do Pearl Jam, que a banda decidiu inclui-la, e ficamos gratos por essa insistência. Trata-se de um dos melhores refrãos de Cornell, escoltados por um solo-clímax efervescente de Kim.

 

“No Attention” é outra canção rápida, e menos chamativa, enquanto “Switch Opens” explora o lado psicodélico do grupo. “Overfloater” segue a linha de “Tigher & Tigher”, e começa lenta para explodir de maneira arrasadora. “An Unkind” fecha as contribuições de Ben Shepherd em nota alta, e captura o ouvinte por sua levada pop, com ecos vocais do subestimado “Euphoria Morning”, primeiro material solo de Cornell. A faixa é seguida pela etérea e genial “Boot Camp”. Gravada em apenas um take vocal, “Boot Camp” se assemelha a uma música dos Beatles executada pelo Soundgarden, e por meio dela, a banda se despede em tom melancólico (“Far away, far away from here and I'll be here for good”).

 

Contudo, reitero que a força de “Down on the Upside” não reside na análise individual de suas partes – sendo sempre preferível sua audição integral – mas na figura surgida do encaixe de suas peças. E que imagem é essa?

 

Os espaços liminares, ligados a liminaridade, são lugares por quais todos passamos. São descritos como locais onde o “que era”, e o “que virá”, se encontram, formando um sentimento de não saber o que está por vir, e de inquietude frente ao inexplorado. São os galpões abandonados, as rodovias perdidas no nada, os barulhos bizarros que circundam uma casa de fazenda na madrugada. É aquela sensação da infância, de ir na escola a noite; de sair do cinema após a última sessão e se deparar com uma cidade fantasma.

 

E talvez sejam esses sentimentos, intrinsecamente esotéricos, as melhores traduções do que é ““Down on the Upside”. Desde sua capa, até a atmosfera empoeirada de suas músicas, percorrendo pelas brilhantes letras de Cornell, a característica do incerto é recorrente, ao ponto de tornar-se porção vital do quebra-cabeça musical que é o disco. Essa dualidade, digna de Schrödinger, entre o passado nostálgico e o futuro angustiante, acaba transformando-se no tema central do álbum, e curiosamente, se conecta perfeitamente com a própria jornada do Soundgarden.

 

There must be something good far away, far away from here

 

Lançado no dia 21 de maio de 1996, “Down on the Upside” recebeu críticas positivas, porém discretas se comparadas as de seu antecessor, “Superuknown”. No geral, foram ressaltadas as melodias poderosas e catárticas do álbum, com elogios aos experimentalismos adotados e as performances vocais de Cornell. Em relação as vendas, o disco obteve bons números no lançamento, obtendo o segundo lugar na Billboard 200, mas não atingiu o mesmo impacto cultural dos trabalhos anteriores.

 

A verdade é que, com as dificuldades encontradas pelos colegas de cena, somadas as mudanças do Zeitgeist, o som de Seattle via o começo de sua derrocada como gênero porta-voz de uma geração. 

 

No entanto, não foram fatores comerciais os responsáveis pelo fim do Soundgarden. A faísca que faltava para ocasionar uma explosão foi o baixo com mau contato de Ben Shepherd durante um show em Honolulu, em fevereiro de 97. Frustrado pelo comportamento do baixo, que ligava e desligava durante a apresentação, Ben arremessou o instrumento pelos ares e a banda toda voltou para o backstage, interrompendo o setlist na metade. Cornell ainda retornaria ao palco, finalizando a noite com algumas músicas em versão “voz e guitarra”. 

 

Naquele momento a tensão dentro do grupo havia atingido seu pico máximo, e o próximo passo era previsível. Dois meses depois o Soundgarden anunciava sua separação.

 

E enquanto o Pearl Jam se perdia na introspecção “Neil Youngiana” de seu quarto disco, “No Code”; o Stone Temple Pilots mergulhava de cabeça na neo-psicodelia de “Tiny Music… Songs from the Vatican Gift Shop”; e bandas como Mudhoney, The Melvins e Screaming Trees já não gozavam dos privilégios de terem seus álbuns alçados e abraçados pelo mainstream (um sonho apenas possível no ápice da era grunge), sobrava então, em retrospecto, o papel de canto do cisne ao singelo, porém magistral, “Down on the Upside”. 

 

Um álbum que simboliza não toda a trajetória do grunge, mas sim o seu aceno de adeus, e que, em sua “singularidade única”, cada vez mais distante daquilo que era ou poderia representar o estilo no início, reúne o conceito completo de uma sonoridade reflexiva, tais quais os espaços liminares, retratos dignos dessa longa viagem rumo ao desconhecido.